Por: Coluna de Diego Franzen
Há um instante na vida em que tudo silencia. Um instante em que o ruído da pressa, dos boletos, das contingências e das certezas provisórias cessa e, então, o homem ouve. Não uma voz. Mas um chamado.
É o lago.
É quando a paisagem concreta se dissolve e, no espelho invisível da alma, reflete-se aquilo que sempre esteve ali. O desafio. A escolha. A convocação.
Nesse instante solene, o homem se vê sozinho. Não perante os outros, mas perante o que nele há de mais antigo, mais essencial, mais irreprimível. É quando ele se encontra, enfim, diante da pedra.
A pedra não é apenas obstáculo. É alegoria. A pedra é o mundo sem alma. A rigidez daquilo que é, mas não sonha. A pedra é o peso da matéria que se impõe sobre o espírito, exigindo força, sim, mas sobretudo coragem interior. E é ali que está ela: a espada. Não empunhada, não dada — mas cravada.
Arthur, ainda sem trono, sem coroa e sem nome que o precedesse, caminhava como todos os outros. Mas carregava algo que poucos carregam, o pressentimento do próprio destino. E talvez isso já o distinguisse. Porque há uma estirpe de seres que não se satisfaz com o real. Que ouve, no ruído cotidiano, um chamado sutil. Que vê nas pedras do caminho mais do que pedras, vê sinais.
Retirar a espada da pedra foi mais que força, foi um sacramento. Uma revelação. A espada não respondeu ao músculo, mas ao espírito. O poder do verbo estava preso ao quaternário da matéria. Mas agora não mais, graças ao gesto desinteressado. Ao coração sem ambição. Porque só os que não buscam o poder por si mesmos são dignos de exercê-lo. E por isso a lâmina cedeu. Porque o gesto era justo. E o escolhido, perfeito.
Mas o chamado verdadeiro não é um ato isolado. É um ciclo. Um drama. Um rito contínuo. O mundo não é redimido por um instante, mas por uma sucessão de quedas e reerguimentos.
Por isso, quando a pedra já era passado, e o peso do trono transformara Arthur em sombra de si mesmo, foi o lago que o chamou. Um lago de brumas. De silêncios. De revelações.
A Dama do Lago não era uma mulher. Era um véu. Um mistério. A própria psique profunda, feminina, oculta, que emerge quando tudo parece perdido. E oferece não salvação, mas um novo fardo. Uma nova chance. Uma espada distinta.
Excalibur.
A verdadeira. A consagrada. A que não depende da pedra, mas da alma. Pois há espadas que vêm da terra e, outras, que vêm das águas. A terra representa o mundo tangível, os limites, as leis. A água, o inconsciente, o destino, o fluxo eterno. Excalibur é o elo entre ambos.
Quem a empunha, não mais pertence a si. Porque ela não corta apenas o inimigo exterior, mas fende as ilusões, as vaidades, os enganos. Exige lucidez. Renúncia. Uma espécie de santidade trágica.
Arthur empunha Excalibur e torna-se, paradoxalmente, prisioneiro do que o tornou livre. Porque todo poder verdadeiro isola. Todo trono é uma cela dourada. E há uma solidão nos grandes que os pequenos jamais compreenderão.
A Távola Redonda, símbolo da igualdade em meio à hierarquia, era feita de pactos. De valores. De palavras empenhadas com o próprio sangue. Cada cavaleiro ali representava um arquétipo, uma virtude, uma sombra. Lancelot, o amor dividido. Galahad, a pureza ideal. Gawain, a honra até o erro. Aliás, já falei sobre Gawain aqui neste espaço, e o silente passo do cavaleiro verde.
Os cavaleiros não eram perfeitos. Eram buscadores.E isso os tornava nobres.
Havia um código, jamais escrito, mas sentido, que dizia: “Não buscarás a glória. Buscarás o Graal.”
O Graal, esse cálice invisível, que às vezes se confunde com redenção, outras vezes com morte. O Graal que, como tudo que importa, só se mostra aos dignos e desaparece para os que o desejam por orgulho.
E no centro de tudo,Merlin. O velho que não envelhece. O que sabe o que virá e cala. O que instrui por enigmas. O mentor que toda alma possui, mas que poucos ouvem.Merlin não é um homem. É o pressentimento do sagrado que nos habita. É o mediador entre o visível e o velado. O sussurro que, mesmo em meio ao caos, repete: “Lembra-te quem és.”
No fim, Arthur cai. Como todos os reis caem. Como todos os homens, cedo ou tarde, traem seu próprio ideal. Mas sua queda é também ritual.Porque cair tentando proteger o que é justo é, em si, um triunfo.A barca que o leva para Avalon não leva um derrotado, leva um iniciado. Um rei ferido, mas não vencido.
Hoje, não há espada, nem pedra, nem lago. Há concreto, telas, metas profissionais, familiares e sentimentais. Mas o símbolo não morre, apenas muda de roupa. Dia destes vendo o seriado sobre a vida do Chespirito, uma frase inspiradora ecoou em minha mente e repercutiu em meu coração: “Não sonhe sua vida, viva seu sonho”. É sobre isso.
Excalibur ainda repousa em algum lugar. Não mais em aço, mas no gesto. No risco. Na escolha entre o conforto e o chamado. E o lago ainda espera. A pedra ainda desafia. A Dama ainda observa. E Merlin ainda sussurra.
A pergunta não é se tudo isso é real.
A pergunta é: quando o silêncio cair sobre ti, serás justo e perfeito o suficiente para ouvir o chamado?
Diego Franzen é jornalista, escritor, autor de 14 livros, fundador e CEO da Tempora Comunicação e gestor de conteúdo do Portal Pauta Serrana