Coluna de Diego Franzen – Jornalista e escritor
Terminei Round 6 este fim de semana. O seriado coreano da Netflix. Um deleite amargo, desses que a gente consome como se bebe licor forte, com prazer estético e náusea moral.
Vi ali, sob o verniz das luzes fluorescentes e das fantasias rosadas, não apenas a Coreia. Vi o Brasil. Vi o mundo. Vi a modernidade tardia em sua forma mais pura e pornográfica: um matadouro higienizado, onde a carne é humana e a plateia, cúmplice.

A série principia com um punhado de endividados, desses que habitam todos os continentes: o sul-coreano de apartamento apertado, o brasileiro com CPF negativado, o americano que paga seguro-saúde com cartão de crédito. São os eternos jogados à margem, esmagados pela engrenagem da dívida, essa nova forma de feudalismo digital que transforma o salário em penitência e o amanhã em ameaça.
Oferecem-lhes salvação. Uma chance. Um jogo. A utopia meritocrática em sua versão sangrenta. Aqui, quem vencer leva tudo. Quem perder, morre. A vida, enfim, despojada de hipocrisias. Sem compliance, sem ESG, sem storytelling corporativo. Apenas sangue, suor e cifrão.
E todos aceitam. Por quê? Porque todos já aceitaram. O jogo é a vida cotidiana, apenas exibido sem maquiagem. Não é ficção. É transparência. Round 6 não é alegoria.
É espelho.
Os jogadores, como qualquer cidadão médio globalizado, começam como vítimas e terminam como algozes. A fome os trouxe, mas é a ganância que os move. Em poucas rodadas, já não querem escapar, querem vencer. E vencer, neste mundo, é um verbo intrinsecamente homicida. Só se sobe pisando. Só se brilha ofuscando.
Só se lucra sugando.
A sociedade contemporânea é um Round 6 contínuo. Não há botão de pausa. Não há “episódio final”. A diferença é que fora da série os cadáveres são simbólicos. Os derrotados não tombam em poças de sangue, apenas somem das planilhas. São desligados. Desalojados. Desassistidos. Morrem em sigilo. A crueldade foi automatizada e distribuída em parcelas.
Na política, o jogo é escancarado. As alianças se formam conforme o volume do prêmio. Os debates, com sorte, são jogos de bolinha de gude com palavras difíceis. Quem se recusa a jogar é eliminado por anacronismo. O cidadão acredita que escolhe, mas seu voto é uma ficha num cassino operado por cínicos. A cada ciclo eleitoral, os VIPs aplaudem.
Os mesmos.
Sempre os mesmos.
No mercado de trabalho, o round nunca termina. Cada funcionário é um candidato à próxima dispensa. Cada reunião, uma seleção natural. As metas, as apresentações, os relatórios em PowerPoint são apenas formas elaboradas de sobrevivência. E o colega sorridente? Um competidor silencioso. A fraternidade corporativa é uma fábula contada no onboarding.
Globalmente, é a mesma engrenagem com sotaques distintos. Bancos emprestando a juros usurários disfarçados de “crédito pessoal”. Multinacionais terceirizando miséria com selo verde. Estados espionando seus cidadãos enquanto prometem liberdade. O mundo virou um tabuleiro onde o fracasso é culpa pessoal e o sucesso, uma benção de algoritmo.
Round 6 escancara a lógica que nos rege: o espetáculo da dor como entretenimento, a competição como ética, a morte simbólica do outro como pré-requisito da nossa vitória. O que vemos ali, naquele dormitório lúgubre, não é um grupo de jogadores. É a humanidade. Nós, disfarçados. E o mais chocante, o mais humano, é que torcemos. Escolhemos favoritos. Sofremos por eles. Mas sabemos, no fundo, que poderiam ser nós. Que somos eles.
Talvez a pergunta que reste seja só esta: se você estivesse naquele dormitório, deitado em um beliche de metal, esperando a próxima prova que pode custar seu fígado ou seu futuro, até onde iria? Trairia seu amigo? Seu irmão? Sua mãe?
Ou melhor: você já não traiu?