Quem observa com atenção o mapa do Rio Grande do Sul nota, bem no centro do Estado, uma grande mancha azulada, uma espécie de cicatriz líquida que corta a região em sentido vertical. É o Lago Passo Real, o maior reservatório artificial do Estado, com 230 quilômetros quadrados de área e 610 quilômetros de orla, o equivalente ao litoral entre Torres e Chuí. Essa imensa massa de água, com cerca de 60 quilômetros de extensão, não existia até meados do século passado. Surgiu a partir de uma das maiores obras de engenharia já realizadas em solo gaúcho, que alterou profundamente a geografia, a economia e a história de diversas cidades da região.

A construção do reservatório teve início em 1968, com o desvio do curso do rio Jacuí para possibilitar a construção da barragem. Dois anos depois, em setembro de 1970, o então presidente da República, Emílio Garrastazu Médici, esteve presente para o fechamento dos túneis de desvio, permitindo que o Jacuí voltasse ao seu leito original, agora interrompido por uma imensa muralha de concreto com 3,85 quilômetros de extensão e 58 metros de altura. Sem passagem livre, as águas começaram a se acumular e, lentamente, invadiram os campos e baixadas que se estendiam desde Salto do Jacuí até Ibirubá, alagando lavouras, pastagens e vilarejos nos municípios de Jacuizinho, Campos Borges, Alto Alegre, Quinze de Novembro, Selbach e Fortaleza dos Valos.
O processo de enchimento levou cerca de três anos, com o nível da água subindo poucos centímetros por dia. Em setembro de 1973, o reservatório atingiu sua capacidade máxima, e foi inaugurada a Usina Hidrelétrica Passo Real, também com a presença de Médici. Desde então, a usina se tornou um dos principais pontos de geração de energia do Rio Grande do Sul, com capacidade para produzir 158 megawatts.
Um marco na geração de energia no Estado
O reservatório do Passo Real funciona como uma “bateria” para a usina, garantindo o fornecimento contínuo de energia mesmo em períodos prolongados de estiagem. Segundo técnicos da Companhia Estadual de Geração de Energia Elétrica (CEEE-G), caso nenhuma nova gota de chuva chegasse ao lago, ainda assim seria possível gerar eletricidade por até um ano.

Além de sua função energética, o reservatório desempenha um papel importante no controle de cheias. Em 2015, quando o lago Guaíba ameaçava transbordar em Porto Alegre, a barragem do Passo Real foi usada para reter temporariamente as águas do Jacuí, impedindo danos maiores na capital. Durante dois dias, a usina foi desligada para conter o fluxo e permitir o controle do nível das águas a jusante.
Atualmente, a hidrelétrica passa por um momento histórico: pela primeira vez, uma de suas duas unidades de geração está sendo totalmente desmontada para modernização. A intervenção, que se estenderá por cerca de 330 dias, demandará investimentos da ordem de R$ 40 milhões e tem como objetivo garantir a eficiência e segurança da operação por mais décadas.
O nascimento de uma cidade
A obra da barragem mudou para sempre a configuração urbana e social de Salto do Jacuí. Até os anos 1950, a região era uma zona rural isolada pertencente ao município de Espumoso. Com a construção da primeira usina da região, a Leonel de Moura Brizola, inaugurada em 1962, e, posteriormente, do Passo Real, milhares de trabalhadores foram atraídos para o local. Assim nasceu, na prática, o município de Salto do Jacuí.
Na época da construção, a CEEE ergueu uma vila planejada para abrigar seus funcionários, com 305 residências, escola, hospital, igreja, açougue, padaria, hotel e até campo de futebol. A estrutura contava com infraestrutura completa, incluindo rede de esgoto e iluminação pública. A entrada era controlada por guaritas, e apenas empregados da companhia e seus familiares tinham acesso. Fora da vila, havia poucas casas e duas ruas principais.

Orlando Roque Mathias, hoje com 66 anos, é uma das testemunhas dessa transformação. Começou a trabalhar na montagem da usina em 1972, ainda jovem, e recorda-se do cenário efervescente da época, com operários de todas as partes do Brasil vivendo em alojamentos improvisados e uma cidade temporária com vida própria, cheia de sotaques diferentes e marcada por intensas jornadas de trabalho.
“Era um verdadeiro formigueiro humano. O local parecia uma cidade provisória. Havia ruas, supermercado, churrascaria, alojamentos e muita gente do interior do Brasil. Os solteiros moravam nos barracões, enquanto os casados traziam a família”, recorda Orlando.
Em 1995, ele também testemunhou o momento mais tenso da história da usina: o incêndio que atingiu as duas turbinas da casa de força. Apesar do susto, não houve feridos, e a operação foi restabelecida após os reparos.
Os números da grandiosidade
A construção da barragem do Passo Real mobilizou um volume impressionante de recursos e mão de obra. Foram realizadas escavações que somaram 4 milhões de metros cúbicos. A estrutura levou 134 mil metros cúbicos de concreto e 5,5 milhões de toneladas de aço, além de 3,7 milhões de metros cúbicos de aterros. O investimento divulgado na época foi de US$ 100 milhões, hoje equivalentes a aproximadamente R$ 2,5 bilhões, em valores corrigidos.
Cerca de 1,5 mil famílias foram desalojadas com a formação do lago, cujas águas cobriram vastas extensões de terra antes utilizadas para agricultura e pecuária. Os impactos ambientais e sociais foram enormes, o que, segundo especialistas, inviabilizaria a construção de um projeto desse porte nos dias atuais. Hoje, o modelo preferido são as chamadas “usinas a fio d’água”, que operam com reservatórios reduzidos e menor impacto ambiental, integradas ao Sistema Interligado Nacional.
No entanto, há 50 anos, o Rio Grande do Sul vivia sob o risco de racionamento e precisava produzir sua própria energia. E o Passo Real foi a resposta. Uma obra monumental que marcou uma época e continua, até hoje, moldando a paisagem e a história de toda uma região.
Com informações: Jornalista Fernando Kopper
Fotos: Rodolfo Augusto Schettert de Oliveira